Certa vez eu ia pegar um ônibus para viajar...
Eu estava uns vinte minutos adiantado. Confundi o horário do ônibus. Ou a companhia de ônibus tinha confundido o horário.
Resolvi comprar um jornal, para fazer as palavras cruzadas, e fui ate um restaurante para tomar um café.
Comprei o café e também biscoitos.
Com tudo isso em mãos, eu procurei uma mesa e sentei. Um cara que já estava na mesa, maleta de couro, terno e gravata. Não tinha cara de quem estava prestes a fazer uma coisa estranha. Perfeitamente normal. Ele estava sentado na minha frente.
Eu lá, sentado à mesa. À minha esquerda, o jornal, à direita o café, e no meio da mesa o pacote de biscoitos.
estava sentado nessa mesa.
Então o rapaz se inclinou sobre a mesa, pegou o pacote de biscoito, abriu, pegou um e comeu.
Diante das circunstâncias, fiz o que qualquer gaúcho viril faria. Fui obrigado a ignorá-lo.
Não e o tipo de coisa para a qual a gente esta preparado, né? Vasculhei minha alma e descobri que não havia nada na minha criação, experiencia ou ate nos meus instintos básicos me dizendo como reagir diante de alguém que, sentado na minha frente, simplesmente, calmamente, rouba um dos meus biscoitos.
Concentrei furiosamente a minha atenção nas palavras cruzadas... Não consegui preencher nada, tomei um gole de café, estava quente demais para beber, então eu não tinha nada para fazer. Me preparei. Apanhei um biscoito, tentando fingir que não tinha reparado que o pacote já estava misteriosamente aberto e comi o biscoito. Comi deliberada e ostensivamente, para que ele não tivesse duvida sobre o que estava fazendo.
Ele foi lá e apanhou outro. Sério, foi exatamente o que ele fez. Ele apanhou outro biscoito e comeu. Tão claro como a luz do dia. E o problema é que como eu não havia dito nada da primeira vez, ficou ainda mais difícil levantar o assunto da segunda vez. O que eu poderia dizer? "Com licença... não pude deixar de notar que..." Não dava mais. Então eu o ignorei, até mesmo com mais vigor do que antes
Olhei para as palavras cruzadas, novamente, não consegui fazer uma linha. Aí, inspirando-me na coragem de Bento Gonçalves na Revolução Farroupilha eu ataquei novamente, peguei outro biscoito. E, por um momento, os nossos olhos se encontraram e nós dois desviamos
o olhar. Mas devo dizer que houve uma pequena eletricidade no ar. Havia uma pequena tensão crescendo naquela mesa. Àquela altura.
Acabamos com o pacote assim. Ele, eu, ele, eu. Parecia que toda uma vida de biscoitos havia se passado diante
de nós. Nem mesmo os gladiadores enfrentavam algo tão difícil.
Quando o pacote vazio jazia morto entre nós, o cara finalmente se levantou, já tendo feito o pior e foi embora. Eu suspirei aliviado, é claro. Anunciaram o meu ônibus um pouco depois, então terminei o meu café, levantei, apanhei o jornal e, embaixo do jornal... Estavam os meus biscoitos.
Trecho extraído e levemente modificado do livro "Até mais, e obrigado pelos peixes!" da trilogia de cinco "O Guia do Mochileiro das galáxias", de Douglas Adams.
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